Bastidores do medo

Segundo a historiadora Lucilia de Almeida Neves Delgado, o golpe de 1964, que marcou o início da ditadura militar, foi construído a partir do clima de instabilidade que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros


                                 Walter Luiz/ Arquivo EM 10/4/64

  Deslocamento de contingente militar comandado pelo general Olimpio Mourão Filho, em Juiz de Fora, rumo ao estado da Guanabara, dando inicio ao golpe contra João Goulart


Era primeiro de abril de 1964. O Brasil amanheceu com as ruas de suas principais cidades tomadas por tropas das forças armadas, apoiadas em alguns estados da Federação, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, pelas polícias militares. Concluía-se, naquele dia, a deposição do governo João Goulart.

A queda do presidente Jango não chegou a ser surpresa. Sua posse, que se seguiu à renúncia do presidente Jânio Quadros, de quem era vice-presidente, foi muito tumultuada. Expressivos setores militares tentaram impedir que um político trabalhista e getulista histórico assumisse a Presidência da República, em substituição ao presidente que renunciara.

O quadro complicou-se ainda mais, pois o vice-presidente, em um tempo de apogeu da Guerra Fria, encontrava-se em viagem oficial à República Popular da China, governada pelo líder comunista Mao Tsé-Tung.

Naquele mês de agosto de 1961, uma cisão que, há alguns anos, vinha ganhando contornos bastante nítidos, aprofundou-se. Havia os ostensivamente contrários ao vice-presidente João Goulart e a toda e qualquer herança do getulismo. Nesse bloco de oposição encontrava-se a maior parte dos políticos da União Democrática Nacional (UDN), proprietários rurais, setores conservadores da Igreja Católica, investidores estrangeiros, parte expressiva do empresariado nacional e importantes lideranças das Forças Armadas.

Havia os que apoiavam o vice-presidente por diferentes razões. Entre eles estavam políticos de forte expressão nacionalista e militares constitucionalistas. Na verdade, a oposição era formada por forças heterogêneas que, naquela conjuntura, uniram-se em torno de objetivos comuns, ou seja: implantar um programa econômico nacionalista no Brasil e realizar as reformas de base. O desdobramento para a crise que se instalou com a renúncia de Quadros foi uma solução negociada, que não agradou nem aos adeptos do novo presidente, nem aos seus opositores. Foi instituído um novo sistema de governo, o parlamentarismo, que reduzia os poderes presidenciais, pois o chefe de governo passaria a ser um primeiro-ministro, designado pelo Congresso Nacional. O presidente da República, por sua vez, exerceria funções de chefe de Estado, sem maior autonomia política.

A posse de João Goulart foi antecedida de grande mobilização, tanto por parte de seus apoiadores, como de seus opositores. Dentre as ações desenvolvidas pelos janguistas destacaram-se uma greve nacional em defesa da ordem constitucional, que daria origem ao Comando Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGT) e a formação de uma cadeia da legalidade constituída por mensagens radiofônicas que defendiam a posse de Goulart na Presidência da República.

Os opositores do presidente atuaram com maior ênfase nas esferas institucionais, especialmente no Parlamento Nacional. Liderados pelos ministros militares de Jânio Quadros e por udenistas históricos, não mediram esforços para evitar a chegada do adversário trabalhista à direção do Poder Executivo federal.

A posse de Jango ocorreu em um clima de instabilidade. O país, que tinha uma Constituição presidencialista, passou a ter um sistema de governo parlamentarista, que não satisfez nem aos aliados de Jango, nem aos seus oponentes.

Na verdade, há alguns anos a polarização que tomou conta do país no início da década de 1960 já vinha se delineando. A bipolaridade dos tempos da Guerra Fria ecoava de forma direta no cotidiano dos brasileiros. A fundação da Escola Superior de Guerra (ESG), em 1949, repercutiu na conjuntura do pré-1964. Os militares ligados à ESG defendiam uma internacionalização aprofundada da economia nacional. Eram contrários ao nacionalismo de Vargas e de seus aliados. Já os getulistas e janguistas queriam a adoção de um programa econômico nacionalista. Estavam, portanto, na contramão do que propunha a ESG.

A defesa de um projeto nacionalista e também reformista ganhou cada vez mais adeptos. Além dos trabalhistas, contou com a adesão das ligas camponesas, da União Nacional dos Estudantes, de grupos de cultura popular, de setores da Igreja Católica progressista, de sindicalistas e de políticos da Frente Parlamentar Nacionalista. Às vésperas da deposição de Goulart, somaram-se a esse heterogêneo grupo membros da Frente de Mobilização Popular e do Grupo dos 11, ambos liderados por Leonel Brizola.

As contradições econômicas e políticas, que floresceram com vigor no governo João Goulart, também tiveram raízes no governo JK. O projeto econômico do presidente Juscelino, apesar de seu imenso sucesso, não deixou de ter um preço elevado. A modernidade capitalista consolidou-se. A dívida externa aumentou, os salários reais foram desvalorizados, as empresas que moviam os setores de ponta da economia eram internacionais e os problemas da má distribuição de terras nas áreas rurais e da miséria dela decorrente continuaram sem solução.

Essas contradições ampliaram-se e o Brasil já fortemente cindido na política passou a ter uma sociedade civil cada vez mais reivindicativa. Quando Jango chegou à Presidência da República o acirramento de conflitos ganhou dimensão incontrolável que ofuscou toda e qualquer efetiva realização de políticas públicas por seu governo.

João Goulart e seus aliados, não conformados com a solução parlamentarista, lutaram pelo retorno ao presidencialismo. Tal fato se consumou em janeiro de 1963, quando em um plebiscito a maioria da população votou pelo fim do parlamentarismo. Jango adquiriu os poderes plenos que a Constituição definia para o dirigente máximo do Poder Executivo. Mas as dificuldades que enfrentava para levar seu projeto governamental adiante não diminuíram. Ao contrário, cresceram. Seus opositores não lhe davam trégua e seus aliados exigiam do presidente um aprofundamento radical do reformismo e do nacionalismo, que ele não se dispunha a adotar. Seu governo caminhava na corda bamba.

O presidente tentava garantir a governabilidade do país. Assessorado por seu ministro do Planejamento, Celso Furtado, propôs um Plano Trienal, que objetivava a realização gradual das reformas de base. Não conseguiu o apoio de seus aliados, que consideraram o plano muito tímido. Por outro lado, seus opositores, cada dia mais organizados, inclusive no Instituto de Políticas Econômicas e Sociais (IPES) e no Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), não se deixaram seduzir pela solução apresentada pelo governo. O Brasil, a cada dia, ficava mais dividido.

Movimentos populares A polarização de forças acentuou-se a partir do início do ano de 1963, pois João Goulart, ao perceber seu crescente isolamento, buscou aproximar-se dos movimentos populares. Anunciou medidas como: controle da remessa de lucros para o exterior e apoio à indústria nacional dedicada à fabricação de produtos mais populares. Os movimentos populares apoiaram as iniciativas presidenciais. Reivindicaram, contudo, novas medidas, como a encampação, pelo Estado, das refinarias particulares de petróleo.

O medo da reforma agrária e da queda de lucro empresarial foi disseminado com muita eficácia pela oposição a Jango. A ele agregou-se o pavor ao comunismo, peculiar aos tempos de Guerra Fria. O clima chegou ao extremo de polarização a partir de três episódios que marcaram os primeiros meses de 1964. O comício de 13 de março na Central do Brasil no Rio de Janeiro, a revolta dos marinheiros – que reivindicavam mais direitos, inclusive o de votar – e o almoço do presidente Goulart com os sargentos no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, que foi considerado um desrespeito à hierarquia das Forças Armadas.

No Comício da Central, cerca de 150 mil pessoas clamavam por reforma agrária, legalização do Partido Comunista, reforma urbana e extensão do direito de voto aos analfabetos. A máquina sindical do CGT garantiu a presença maciça de trabalhadores no comício. João Goulart, naquela ocasião, assinou dois decretos: o de desapropriação de refinarias de petróleo, ainda não encampadas pela Petrobrás, e o da reforma agrária, que regulamentava a desapropriação de propriedades rurais não-produtivas.

Os acontecimentos precipitaram-se. Segmentos da classe média, influenciados pela Igreja Católica e assustados pelo fantasma do comunismo, saíram às ruas, solicitando a deposição do presidente. Em várias capitais dos estados foram organizadas as Marchas com Deus, pela Família e pela Liberdade. Simultaneamente, importantes lideranças militares uniram-se aos governadores Magalhães Pinto, de Minas Gerais; Carlos Lacerda, da Guanabara; e Adhemar de Barros, de São Paulo, com o objetivo de depor o presidente. Foram apoiados pela maioria do clero da Igreja Católica, proprietários rurais, setores da classe média e empresariado internacional e nacional.

Deposto, João Goulart dirigiu-se para o exílio. Chegava ao fim um dos períodos mais democráticos da história republicana brasileira.

Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora. É professora da UNB, UFMG e PUC Minas (colaboradora).

In: ESTADO DE MINAS. PENSAR BRASIL. Sábado, 9 de abril de 2011. p. 20-21.

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